quinta-feira, abril 16, 2015

Ode I
Alexei Bueno
in A Via Estreita

Caminhando na noite, mais centrado que um poço, sem saber até quando
Agora, quando as multidões já não são um espelho infiel,
Como nos fica claro que tudo nos dá as costas.
O vácuo noturno, como um hausto estrelado, nos dá as costas,
O espaço entre as casas, o corredor que o acaso ergueu para nós
Em sobrevivência e pedra,
Nos dá as costas,
Os habitantes presentes, os habitantes extintos, os futuros que não lançaram um vagido
Nos dão as costas,
E nós mesmos, nós mesmos  a nos deixarmos a cada segundo,
Nós mesmos, o ouvido esquecido no último estalar de nossos pés nas lages,
Nos damos as costas.

Senhor, que procuras aqui?
Não, não é aqui a sua casa.

...Criança perdida dos pais às seis horas entre os vidros comerciais, após ter fugido deles apenas por brincadeira,
Velho escleroso que saiu despercebido de casa, sem se lembrar do nome ou da casa,
Cachorro que escapou pelo portão, e por estar mau de faro ou da alma não reencontrou o caminho,
Bonequinho de borracha flutuante que uma onda arrancou das mãos do menino,
E agora navega, inafundável, sabe-se lá por que vasto oceano,
Pássaro que se soltou da corrente, atônito e faminto nas árvores de um terreno baldio...

Não, senhor, não é aqui sua casa.
Não se lembra do bairro, o nome do seu filho, sua filha?
Qual o seu, pelo menos?

Calma, olhemos as flores.
Doce pilosidade da terra, com um corpo mais sutil e mais vasto na carne levíssima da noite,
Felizes vocês, estrelas do mar da argila,
Diademas radiados de um imperador antigo que se chama chão,
Raios de Moisés de um profeta que é um torrão de barro,
Astros pontiagudos da touca do pó...

Felizes vocês, a quem nada volta as costas,
Vocês, que são as próprias costas, e a frente e o centro,
Derivação absurda de um não-ser cheio de formas,
Corpo sem alma, do qual a alma somos nós, vagando, como um sonâmbulo pelo infinito,
Espera alucinada de algum limite que nunca existiu.

Talvez seja melhor ligar para a polícia.
Sua idade ao menos, o senhor lembra, por favor?

E lá na esquina, no entanto, as grandes torres que ficam.
As janelas sem um olhar, as altas portas trancadas.
O vento que arranca as pétalas felizes não as abala,
Elas que são fixas como um triunfo, um fundamento que nos detivesse.
Ah! se os sinos tocassem em plena madrugada, sem mão nenhuma os tangendo,
Se as portas se escancarassem pela própria vontade, mostrando que uma alma incipiente invadiu a matéria,
Se todo corpo inútil, imensamente sem alma, do universo inteiro se aproximasse de nós,
Quebrando o isolamento eterno, as costas, as costas voltadas,
Se as árvores se arrancassem do chão, e claudicando sobre as raízes dançassem nas praças,
De mãos dadas, soltando os cabelas ao vento, e cantando pelos ocos hiantes,
Se os astros no céu formassem desenhos, escrevessem legendas de luz,
Se as pedras das ruas se soltassem por sua própria vontade,
E os postes vagassem como holofotes preocupados pelos caminhos sem volta,
Se tudo fosse a alma que somos, o espelho da Natureza, e não só a nós coubesse o terrível serviço,
Entre as ondas que vomitassem poemas e as estrelas pintoras
Gritaríamos então que chegara a verdade,
Tão absurda quanto a outra, menos que a outra, a verdade;
E o tempo não nos separaria de tudo que não somos nós
Arrancando-nos de nós, para que não nos confundamos, nem conosco,
Pois a própria consciência corrói o imponderável ser, maior que ela...

Em que cidade o senhor nasceu, aqui, nesta mesma?

E assim vamos de novo. As pedras estão tranquilas.
Nada se moveu. O rio continua a correr. Os astros admiram distantes.
As árvores não dançaram. Não recitaram as ondas. O pacto permanece.
Tudo nos volta as costas. Tudo é costas. E enquanto isso os insetos
Morrem na noite quase como uma felicidade,
Sem nome e sem dor, os insetos perfeitos.

As torres apontam para o céu. Um grande espírito petrificou-se.
Maior que os cegos que se masturbam nas quinas, mais indiferente
Que os loucos que constroem sobre a areia, mais endurecido
Que os pecoços dos que não erguem mais o olhar, que os triunfadores que não param,
Cada pináculo se cumpre, indica e nos espreita.
E no entanto os cães, outros os mesmos, latem, latem, como nosso vagante coração.

Ah! esse rio que corre na terra e sem ela.

Calma, senhor, a qualquer momento lembrarás teu nome.


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